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Publicado em: 08/10/2006

Tempos obscuros

Por Celso Mojola

Há alguns anos venho tratando outubro como o "mês do compositor". O que significa realizar, nesse período, alguma atividade especial - um artigo, uma palestra, uma composição comemorativa. Até mesmo o Encontro Anual do NEC/FMCG (Núcleo de Estudos de Composição da Faculdade de Música Carlos Gomes) originou-se em outubro por esse motivo.  
 
Este ano, além disso, tenho um jubileu de prata a comemorar: 25 anos dedicados à música erudita, uma vez que minha primeira composição no gênero são as Variações sobre o Tema do Cravo e a Rosa, para coro misto, escrita no final de setembro de 1981. Em clima festivo, passei a refletir sobre a situação do compositor brasileiro no contexto da sociedade atual. Foi quando topei uma reportagem no Caderno 2 (p. D8) do jornal O Estado de São Paulo (edição de 14 de outubro de 2006).  
 
A matéria, assinada pelo jornalista Júlio Maria, é basicamente uma entrevista com a regente do Coro da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) Naomi Munakata por ocasião da viagem do grupo a Espanha para realização de concertos. Segundo o texto, trata-se da primeira excursão internacional desse prestigiado conjunto.  
 
O programa a ser apresentado na Europa é o seguinte: Quatre Motetes pour um Temps de Pénitence (Francis Poulenc); Drei Quartette, op. 64 (Johannes Brahms); Recordare (Alberto Ginastera); Duas Lendas Ameríndias (Heitor Villa-Lobos); Suíte dos Pescadores (Dorival Caymmi, em arranjo de Pedro Veneziani); Bom Dia (Nana Caymmi e Gilberto Gil, em arranjo de Pedro Veneziani) e Ofulú Lorerê (Osvaldo Lacerda).  
 
Se Villa-Lobos é "de lei" e Lacerda, compreensível (embora demasiadamente convencional) os arranjos de músicas populares me deixaram preocupado. Preocupação essa que aumentou quando li, na reportagem, a justificativa da regente para sua seleção: "É importante mostrar que cantamos bem em outras línguas e ao mesmo tempo levar a eles obras nacionais para mostrarmos o talento de arranjadores brasileiros, já que não temos compositores que escrevem para coro".  
 
Estou seguro que uma musicista do nível de Munakata não deve ter dito isso, embora as palavras estejam entre aspas, exatamente como as transcrevi no parágrafo acima. Certamente ocorreu um equívoco do jornalista, porque a afirmação de não haver compositores brasileiros que escrevam para coro é desprovida do mínimo sentido.  
 
Porém se as palavras sugerem dúvida, o programa dos concertos não. Sob qualquer critério sério de avaliação, as obras escolhidas deixam muito a desejar em termos de representatividade do que é a produção coral brasileira. Se a isso acrescentarmos o fato de que grupos de grande projeção, mantidos integral ou parcialmente com verbas públicas, têm responsabilidade social como divulgadores da cultura brasileira no seu mais alto nível, dá para ficar mais do que preocupado...  
 
Ao interpretar Dorival Caymmi e Gilberto Gil não se está divulgando a cultura nacional? Caymmi e Gil são excelentes compositores, mas pertencem ao gênero popular. Essas peças não foram escritas originalmente para coral, tiveram que ser arranjadas por um outro músico. O Coro da Osesp é um grupo voltado para o repertório erudito, faz disso sua marca de excelência e, portanto, deve dar prioridade a obras de compositores eruditos brasileiros escritas especificamente para coro. Ao levar, na sua primeira viagem ao exterior, um repertório tão defasado em relação à produção brasileira na área, o grupo acaba mesmo passando a imagem de que "não temos compositores que escrevem para coro".  
 
Talvez o que se queira dizer é que os compositores brasileiros não vêm escrevendo obras corais de qualidade compatível com o nível artístico desejado. Caberia então perguntar por que, nos onze anos em que está sob a atual direção, o Coro da Osesp não desenvolveu um projeto regular de encomenda de obras para compositores brasileiros de diferentes estéticas, realizando suas respectivas estréias em conjunto com atividades complementares (encontro com os compositores, gravações, divulgação via mídias pertinentes). Através de um projeto como esse certamente seriam criadas obras corais que poderiam integrar uma excursão internacional do Coro da Osesp...  
 
Ao longo destes vinte e cinco anos dedicados à composição erudita percebo que certas coisas nunca vicejam em nosso país. Entendo perfeitamente que artistas, produtores e público voltados para a música popular pouco valorizem a música erudita brasileira. Mas tenho dificuldade em compreender porque artistas, produtores e público voltados para a música erudita insistem também em pouco valorizar a música erudita brasileira, particularmente aquela criada por compositores vivos.  
 
Nessa área consigo lembrar-me de um caso exemplar. No final dos anos 1980 o regente Jamil Maluf criou, na cidade de São Paulo, um projeto chamado Outros Sons. Esse projeto, muito interessante, consistia em apresentar, junto com a Orquestra Sinfônica Jovem (que mais tarde virou a Orquestra Experimental de Repertório) um músico ou grupo musical que tradicionalmente não seria incluído em um programa de concerto - basicamente artistas populares, já que um dos objetivos do projeto era formar novas platéias para a orquestra. Foram realizadas apresentações com Hermeto Paschoal, Grupo Atlântico de Choro, Titãs, Tom Zé, cantores e cantoras do universo pop mais elitista. Porém, durante os vários anos em que o projeto se desenvolveu com grande sucesso e visibilidade, jamais foi feito um trabalho com jovens compositores brasileiros de música erudita, estudiosos de composição e orquestração, que poderiam criar obras específicas para orquestra num idioma erudito contemporâneo perfeitamente assimilável pelo novo público que o projeto visava alcançar. Uma orquestra sinfônica jovem com financiamento público não deveria primeiro fomentar o desenvolvimento de jovens compositores e apenas posteriormente flertar com o universo popular?  
 
Mas há algo ainda mais enigmático - o silêncio da crítica sobre essas questões. Para ela isso parece ser um problema que não existe. A maior parte das reportagens, em praticamente todos os veículos que se dedicam à música erudita em nosso país, limita-se a perguntas superficiais ou mera divulgação de eventos. Quando não são loas, pura e simplesmente. Nunca há questionamento de conteúdo sobre as escolhas realizadas pelos intérpretes ou produtores. Nunca há questionamento sobre as políticas voltadas para a área de música.  
 
Pode não ser muito agradável comemorar um jubileu em meio a esses pensamentos, mas estamos vivendo tempos obscuros. Felizmente sigo produzindo muito e tenho motivos para minha comemoração particular. No entanto devemos estar atentos. Para que a atividade de compositor erudito no Brasil possa de fato constituir uma carreira profissional muita coisa tem de ser feita pelos compositores além de compor. União é o mote principal, mas igualmente importante é refletir e observar cuidadosamente as artimanhas que praticam as instituições públicas.

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