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Publicado em: 21/01/2009

Homenagens centenárias

Por Celso Mojola

Nos últimos tempos não tem sido incomum encontrar pessoas com 80 anos ou mais em grande atividade produtiva. Os avanços da medicina são bastante visíveis e, para os jovens de hoje, a perspectiva de uma vida terrena de muitas décadas é uma realidade que se torna cada vez mais universal. Apesar disso ainda é excepcional o momento vivido por três artistas em dezembro de 2008: o cineasta Manoel de Oliveira, o compositor Elliott Carter e o arquiteto Oscar Niemeyer completaram nessa ocasião os seus centenários trabalhando ativamente, e seguem no desenvolvimento de novos projetos. Niemeyer até ultrapassou essa marca, uma vez que em dezembro de 2008 completou na verdade 101 anos!  
 
Manoel de Oliveira nasceu na cidade do Porto (Portugal) em 11 de dezembro de 1908. Segundo suas próprias palavras ele é “o estudante de cinema mais antigo do mundo” e agora “começa a aprender algo sobre cinema”. Desde 1985 realiza pelo menos um longa metragem por ano, e no momento está a filmar seu trabalho mais recente, Singularidades de uma rapariga loura. Seus filmes não alcançam as salas mais populares, e seu estilo literário não agrada à maioria dos espectadores atuais. São trabalhos altamente reflexivos que enriquecem muito quem se dispõe a conhecê-los, mas também exigem bastante de quem os assiste. Ou seja, contém um dos “defeitos” mais imperdoáveis na arte contemporânea, já que hoje tudo tem de ser assimilado com muita facilidade pelo público.  
 
Em entrevista concedida pelo cineasta ao jornal espanhol La Vanguardia na ocasião em que completou 98 anos ocorre a seguinte passagem que ilustra com perfeição a personalidade do mestre. Uma jornalista lhe pergunta: “O mundo inteiro vive espantado com o senhor [devido à idade e a intensa produção artística que realiza]. Não se espanta a si mesmo”? Ao que Oliveira responde: “O meu caso é insignificante no mundo. O que sei é que estou espantado com o mundo de hoje, um verdadeiro desastre. O mundo vai mal. O Ocidente se baseou no conhecimento e o Oriente na sabedoria, que são duas coisas diferentes. Os cientistas foram descobrindo as leis da natureza e as aplicaram à técnica, e é isso que dá o desenvolvimento e o progresso. Mas o progresso nos dá o conforto e nada mais. [...] Eu me pergunto: por que o Ocidente não aproveitou a sabedoria do Oriente para corrigir seus males? Ao contrário, o que aconteceu é que o Oriente vem buscar o conhecimento do Ocidente, embora estejam comprovados seus males”.  
 
Outro artista com pensamento e postura incomuns é o compositor norte-americano Elliott Carter. Nascido em Nova York no mesmo dia e ano que Manoel de Oliveira (11 de dezembro de 1908) é o último grande representante de uma linhagem musical derivada diretamente do serialismo. Sua música é complexa e de difícil execução, e um dos aspectos mais enfatizados pelo compositor é o ritmo. Porém não o ritmo como entendido pelas tradições de origem afro-americanas, mas sim de acordo com um pensamento mais abstrato e matemático, próprio da natureza serial do compositor.  
 
Nos últimos anos Carter vem escrevendo grandes obras orquestrais, ópera e música de câmara com inacreditável regularidade, e é frequentemente executado nos concertos voltados para música contemporânea. Compreensivelmente é mais apreciado na Europa do que em seu próprio país, e já foi chamado de “o mais europeu dos compositores norte-americanos”, uma vez que sua produção artística não traz vestígios de linguagem nativa americana e tampouco faz concessões a um nacionalismo previsível.  
 
O brasileiro Oscar Niemeyer encerra esta trilogia dos grandes centenários. Mais-que-centenário, de fato, pois em 2008 completou 101 anos (nasceu no Rio de Janeiro em 15 de dezembro de 1907). Trata-se de um artista de renome internacional, com contribuição significativa para a arte do século 20. Sua obra está intimamente ligada a diversos momentos políticos da história do Brasil, e continua ativo, trabalhando diariamente. O permanente dilema que, feito uma espada de Dâmocles, se coloca para todo intelectual brasileiro (cultura nacional em contraposição à vanguarda internacional) encontrou em Niemeyer uma solução aparentemente sem esforço.  
 
Numa época em que as vaidades individuais são potencializadas ao máximo, e pessoas com pouca coisa a dizer nos alcançam diariamente na TV, imprensa ou blogosfera, é interessante conhecer estas palavras do famoso arquiteto, comentando a louvação que certo estudioso elaborou sobre sua obra: “É claro que me agrada receber os elogios que o autor me faz, e aceitar, com naturalidade, coisas de minha juventude por ele relatadas. Afinal, como sempre digo, sou um homem como outro qualquer, com as qualidades e defeitos que a vida e a genética me deram. Felizmente, e isso me tranqüiliza, não guardo rancor de ninguém, olhando a vida, consciente da pouca importância que temos neste universo fantástico, que, sem consulta, nos usa, encanta e dele nos descarta quando bem quer”.  
 
Os três nomes comentados exerceram influência em minha formação artística. É admirável o trabalho por eles realizado, e em suas respectivas áreas são referências de excelência. É admirável, sobretudo, a longevidade de suas carreiras. Todo artista sabe o quanto é difícil fazer surgir algo novo e significativo, e o quanto é difícil suportar o isolamento e a indiferença com que são recebidos os verdadeiros criadores. Oliveira, Carter e Niemeyer certamente tiveram momentos de reconhecimento e glória, mas também enfrentaram horas de obscuridade e desvalorização. E conseguiram passar por elas com saúde e ânimo.  
 
Acerca dos inúmeros concertos com suas composições que vêm ocorrendo no mundo todo por ocasião de seu centenário, Carter comenta: “Sempre sofri grande antagonismo com relação à minha música; agora, de repente, parece que as pessoas começam a gostar dela. Bem, talvez elas realmente não gostem dela, mas pelo menos a tocam...” Manter acesa a chama da criação por tanto tempo, e por tanto tempo produzir obras de qualidade, são coisas raras que merecem ser destacadas.  
 
Para marcar esta tríplice efeméride compus em dezembro de 2008 um conjunto de peças para piano, cada uma delas dedicada a uma das personalidades aqui comentadas. Assim foram escritas Filmando com Manoel, Compondo com Elliott e Arquitetando com Oscar, reunidas sob o nome geral de Homenagens centenárias. É uma modesta forma de manifestar minha apreciação por esses grandes artistas.

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