Publicado em: 24/10/2017
Os nanocompositores
Por Celso Mojola
Quem se interessa por música clássica conhece e aprecia o site IMSLP, onde podem ser baixadas gratuitamente partituras de compositores de todas as épocas. Na sua maioria são edições antigas, em domínio público e de excelente qualidade, muito úteis para estudantes, intérpretes e professores. Como é natural em se tratando desse gênero, a principal parte do acervo concentra-se em obras dos séculos XVIII e XIX, mas há autores de períodos anteriores e também contemporâneos, que divulgam ali suas obras permitindo sua reprodução.
Visito frequentemente o local e, a cada nova consulta, sempre me fascina a enorme quantidade de compositores listados (em ordem alfabética), muitos completamente desconhecidos para mim. Alguns exemplos: BEETHOVEN repousa entre Joseph BÉESAU e Louis Abel BEFFROY DE REIGNY; BRAHMS é antecedido por May H. BRAHE e sucedido por Heather BRAILSFORD; e Frédéric CHOPIN habita um espaço junto a Richard Robert CHOPE [sic] e Frantisek Xavier CHORON!
Não tenho a mais remota ideia de quem foram esses compositores. Pelos nomes consigo imaginar suas nacionalidades e, com um pouco de experiência, talvez aproximar o período em que viveram. Na verdade, o efeito é um pouco cômico, porque nomes complexos, incomuns, difíceis de memorizar, cercam nomes extremamente populares e óbvios; olhando com certa atenção, percebo que o número desses compositores desconhecidos é várias vezes maior do que o das celebridades, e constantemente descubro novos autores.
Este hábito fez surgir em mim o conceito de nanocompositor – o compositor microscópico! Aquele minúsculo ser que vive no universo da composição clássica (ou contemporânea), produz obras, tem carreira profissional, influencia discípulos, mas é ignorado pela história. E que, no mundo real, constitui a quase totalidade dos artistas. Somos tão influenciados pela maneira como a história da música é contada que sabemos tudo sobre o “Gigante de Bonn”, mas ignoramos completamente o micro que mora ao lado.
Ouço alguém objetar: “Se determinado músico tornou-se grande, ele é bom e merece ser reconhecido; quem é pequeno não tem certamente a mesma qualidade. Se posso acessar os maiores, por que gastar meu tempo com artistas menores?” Esta convicção é bastante usual, e já traz dentro de si a resposta: opção pelo dominado, segurança do conhecido, rejeição a uma experiência estética diferente.
Enquanto os grandes compositores possuem estilo claramente definido, seja por mérito próprio ou porque foram tão estudados que suas artimanhas se tornaram segredos de polichinelo, os nanocompositores são misteriosos e complexos. Agregam procedimentos incomuns, aproximam-se do inesperado, desafiam a tranquilidade do intérprete e do ouvinte. Muitas vezes isso é feito de modo tão desconcertante que não temos certeza de que o que ali está é fruto da criatividade ou da incompetência (talvez de ambas simultaneamente).
Infelizmente muita coisa dificulta, ou mesmo impede, o caminho do nanocompositor até o público. As abordagens convencionais tendem a se concentrar nos gênios, deixando de lado os simplesmente esforçados e talentosos. Desconhecem completamente os menores. Isso se reflete na programação de concertos, na crítica, no repertório dos intérpretes, no gosto do público. Aquele que, demonstrando maior grau de refinamento, se interessar por esses artistas alternativos, não os encontrará facilmente em recitais ou gravações, tampouco conseguirá informações biográficas ou partituras.
Na verdade, com a internet, muita coisa está disponível. Não é uma fartura de material, mas há muito mais do que na época em que eu cursava o bacharelado em música, trinta anos atrás. Nesse sentido as novas gerações estão razoavelmente abastecidas; o problema acaba sendo o interesse mesmo. O gigante entra em nossa vida, o nanocompositor não. Para apreciá-lo faz-se necessária uma ação determinada, um movimento em direção a ele.
O conceito pode ser estendido e utilizado em outra perspectiva. Do ponto de vista global, a tradição da música clássica apoia-se na produção europeia, particularmente aquela da escola germânica, da qual são selecionados os expoentes. Se mesmo europeus um pouco mais afastados dessa referência são colocados em posição secundária, o que dizer dos países da América Latina ou da África? Considerando a visão internacional dominante, podemos afirmar que, em se tratando de música clássica, praticamente toda produção brasileira é realizada por nanocompositores.
De particular importância é a presença dessa figura na música contemporânea. Quando nos protegemos do brilho das estrelas fulgurantes, enxergamos uma enorme quantidade de micro compositores extremamente criativos e interessantes que apontam, cada um a seu modo, diferentes caminhos para o presente. Da mesma forma que na área de negócios, onde importantes inovações surgem a partir de microempresas (as chamadas startups são hoje um caso consagrado), é no ambiente dos nanocompositores que vamos encontrar muitas descobertas. Mesmo quando eles não são tão inovadores (sim, é claro, muitos nanocompositores são extremamente conservadores) a similaridade permanece, uma vez que as microempresas como um todo empregam o maior número de pessoas e os compositores microscópicos são os mais numerosos.
Uma das características da arte atual é o enfraquecimento das fronteiras. Cada vez mais temos dificuldade para definir estilos, técnicas, identidades. Conceitos como música popular e música erudita se diluem, bem como o nacional e o internacional, o presente e o passado, o bom e o mau gosto. Há inclusive uma tendência, entre os artistas mais criativos, a trabalhar no espaço entre os gêneros, de modo que o resultado é uma obra de difícil classificação. Isso aparece com frequência na literatura, no cinema e nas plásticas, mas tem manifestações importantes também na música. Parece-me que os mais aparelhados para navegar nesse nevoeiro são os nanocompositores, mais acostumados com um mundo instável e sem um centro perfeitamente definido.
Provavelmente, nos séculos anteriores, o sonho de todo compositor era ser um gigante. O que é compreensível, uma vez que havia muitas dificuldades para se divulgar uma obra e não devia ser nada fácil a vida de um ilustre desconhecido. Hoje também não é, mas os recursos tecnológicos permitem que se consiga disseminar certa influência. Mais importante, porém, é o fato de que o micro responde melhor aos problemas artísticos contemporâneos do que o macro. Há no pequeno uma beleza bastante enriquecedora, que é a essência dos nanocompositores: você não vê, mas eles estão por aí.
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